quinta-feira, 22 de março de 2012

ÁGUA

Água para comer

Dependemos dela não apenas para matar a sede, mas também para produzir nossos alimentos. E o desafio é desenvolver práticas de irrigação que economizem água e aumentem a produtividade

Como é seu café da manhã? Digamos que seja um copo de suco de laranja, uma xícara de café com leite e uma fatia de pão com manteiga. Ainda que existam pequenas variações desse cardápio básico, você consumiu, apenas nessa pequena refeição do início do dia, aproximadamente 400 litros de água – e, ao longo do dia, você consumirá, pela alimentação, muito mais água para comer do que para matar a sede ou exercer seus hábitos de higiene. Segundo estudos realizados pela ONU, cada ser humano gasta de 20 a 50 litros de água por dia para consumo direto (beber, tomar banho, cozinhar) e, no mesmo período, consome de 2 mil a 5 mil litros indiretamente na sua alimentação.
Esses dados refletem a necessidade, cada vez maior, da utilização da água para produzir alimentos por meio da irrigação – uma técnica incorporada à agricultura que tem sido uma das principais responsáveis pelo aumento da produtividade de alimentos desde tempos remotos. Não parece haver dúvidas quanto ao fato de que assírios, caldeus e babilônios já utilizavam a irrigação em 4500 a.C. A primeira grande obra dessa natureza, porém, é atribuída ao faraó Ramsés 3º, que, por volta de 1190 a.C., ordenou a construção de diques, represas e canais para melhorar o aproveitamento das águas do rio Nilo. Mas talvez a referência mais ilustre de irrigação seja a de Israel, que conseguiu transformar áreas desérticas em plantações extremamente produtivas a ponto de não só suprir suas necessidades, mas, também, tornar-se exportador de cereais e frutas.
Assim, a importância da irrigação é tão pronunciada que hoje dois terços do consumo de água em todo o planeta é destinado à agricultura, segundo a FAO. No Brasil, a área irrigada é muito pequena e com um grande potencial de crescimento. Segundo o Ministério da Integração Nacional (MI), dos 30 milhões de hectares que podem ser irrigados, somente 4 milhões estão em produção. São apenas 5% da área plantada no Brasil – mas que representam, ainda segundo o MI, 16% do volume de alimentos e 35% do valor de produção.
Em outras palavras, a irrigação não só permite a agricultura em áreas carentes de água como, também, é um fator fundamental para o aumento da produção, mesmo em áreas úmidas, como indica um estudo do Ministério da Agricultura (veja quadro ao lado). E aumentar a produção de alimentos é cada vez mais uma questão fundamental para o presente e, principalmente, para o futuro – tendo em vista o aumento de demanda decorrente do crescimento populacional. Segundo a ONU, com 80 milhões a mais de habitantes no planeta por ano, é preciso acrescentar mais 64 bilhões de metros cúbicos de água na agricultura no mesmo período. Em 1960, diz um estudo da FAO, um hectare era capaz de sustentar, em média global, 2,4 pessoas e, graças à irrigação, essa média subiu, em 2005, para 4,5 pessoas – e deve aumentar para 6,4 pessoas até 2050.

Aumento de produtividade
Tecnicamente, irrigar significa apenas deslocar a água de seu lugar de origem para outro. Foi o que aconteceu, por exemplo, nos anos 80, com os canais de irrigação construídos para desviar parte das águas do rio São Francisco para as redondezas de Petrolina, o que permitiu à cidade o título de maior exportador de frutas do Brasil.
Segundo estimativa da FAO, em 2030 dois terços de todos os cereais colhidos no planeta serão oriundos da agricultura irrigada e a maior preocupação dessa instituição é garantir “mais produção com menores quantidades de água nessas áreas”. Afinal, o problema não é exatamente a escassez da água, mas, sim, sua disponibilidade onde ela é necessária. “A irrigação não consome a água”, diz Abílio Antunes, pesquisador da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig) da área de irrigação. “A água que se perde no transporte permanece no ciclo hidrológico e volta ao ambiente.” A questão envolve, isto sim, a demanda concentrada em determinadas regiões que pode eventualmente provocar escassez de água. Por esse motivo, as ações para economia de água começam a se multiplicar para permitir seu uso mais racional, otimizado e amplo.
“É possível diminuir a quantidade de água captada pela agricultura irrigada sem diminuir a produção. Os agricultores, de modo geral, tendem a irrigar acima do necessário para obter um máximo físico da produção”, diz Eugênio Ferreira Coelho, pesquisador da Embrapa Mandioca e Fruticultura. Segundo ele, se o agricultor procurasse o “máximo econômico” – ainda que a sua produção fosse menor – ele poderia economizar até 15% da água utilizada.
A verdade é que a busca de soluções a respeito das formas de irrigação, tendo em vista maior produtividade e melhor uso da água, é uma preocupação histórica. A invenção da técnica de irrigação com aspersor de impacto, feita 1933 por Orton Englehart, que cultivava laranjas no sul da Califórnia, foi comparada, na época, ao invento da lâmpada e do telefone – e, de fato, revolucionou a produção de alimentos, oferecendo a primeira alternativa prática de irrigação por superfície, com o desenvolvimento dessa técnica de irrigação por simulação de chuva.
Hoje, muitos produtores já estão preocupados com esse assunto e procuram encontrar soluções não só mais produtivas como também que representem economia consistente de água. Um exemplo vem do Rio Grande do Sul. Os 18.500 produtores de arroz do estado são responsáveis por cerca de 60% da produção brasileira. Graças às extensas áreas de planícies e à abundância de água, o sistema que predomina na região é o de cultivo com irrigação controlada, que tem nível de produtividade muito alto e é o mais utilizado no mundo.
O arroz irrigado é uma das culturas que mais demanda água e tem sido alvo constante de práticas para melhorar esse aspecto. Os esforços dos rizicultores gaúchos têm dado resultado. Em 1960, a produção de 1 quilo de arroz utilizava 5,7 mil litros de água, hoje muitos produtores já alcançaram a marca de mil litros de água para cada quilo de arroz, utilizando-se de novas práticas e tecnologias.

Experiências de sucesso
No cultivo de arroz pré-germinado, era comum que os produtores drenassem a água da lavoura após o preparo do solo para fazer a semeadura. Pesquisas mostraram que a prática pode causar o empobrecimento do solo, o assoreamento e a contaminação dos mananciais, além de perdas de 15% a 20% do volume de água utilizado em todo o ciclo da cultura. O Instituto Riograndense de Arroz (Irga) passou então a incentivar a não drenagem das plantações, com a manutenção da lâmina de água. Além dos benefícios ambientais, a prática também reduz o consumo de energia elétrica, o uso de defensivos agrícolas e a necessidade de mão de obra, ou seja, diminui o custo de produção. O projeto, denominado Tecnologias Mais Limpas, foi criado pelo Irga para que os rizicultores adotassem práticas ambientalmente mais corretas e, assim, se habilitassem a receber o selo ambiental. A iniciativa faz parte do programa Arroz RS, que tem por objetivo aumentar a produtividade média no estado – atualmente, de 7.300 quilos por hectare –, reduzindo o consumo de água, os custos de produção e o impacto ambiental da rizicultura, além de melhorar a qualidade do produto.
Visitamos a Fazenda Ranchinho, localizada no município de Mostardas (RS), que recebeu o selo ambiental em 2010. O sistema de drenagem foi redesenhado e desemboca ao lado das bombas que abastecem o sistema de irrigação com água da Lagoa dos Patos. João Nascimento da Rosa, gerente operacional da propriedade, explica: “Não é interesse do produtor perder a água cheia de nutrientes. Nosso sistema foi feito para bombear de volta para a plantação a água que escapa das quadras”. A mudança representou uma economia de 15% de água utilizada na plantação de 1.227 hectares, que produziu 7.800 quilos de arroz por hectare em 2009.
A principal medida para a economia de água na rizicultura irrigada é a sistematização da plantação, que substitui a tradicional plantação em curvas de nível. O sistema consiste na divisão da área em quadros com a medida-padrão de 1,74 hectare – também chamados de canchas – que são aplainados. A nivelação do solo facilita a manutenção de uma lâmina de água baixa e evita perdas. Marcos Solon Borges, rizicultor da região de Mostardas, confirma: “Depois que sistematizei a lavoura, a economia de água foi de pelo menos 30%”.
Há ainda muito a se fazer nesse sentido. A pesquisadora Regina Célia de Matos Pires, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), da Secretaria de Agricultura de São Paulo, afirma que “a escolha do melhor método e do momento certo para a irrigação pode representar uma economia de até 30% de água”.
Há vários métodos de irrigação. Na irrigação por superfície, usado na rizicultura, a distribuição da água se dá por gravidade por meio de canais e sulcos cavados no solo. Na irrigação por aspersão, jatos de água são lançados ao ar e caem sobre a cultura na forma de chuva. No sistema de gotejamento, a água é transportada por mangueiras que correm rente ao solo e é aplicada de forma pontual. A grande vantagem desse último sistema, em termos de economia de água, é não molhar a folhagem ou o colmo (caule) das plantas, diminuindo a perda de água pela evaporação e pela lixiviação (quando a água escoa pela superfície levando nutrientes).
Para auxiliar os produtores, o IAC realiza estudos sobre diferentes tipos de solo e clima com dados de diversas culturas – como feijão, soja, ervilha, milho, cana de açúcar, café, tomate, batata e morango – para estabelecer os parâmetros mais adequados à irrigação de cada uma delas.
Produtores, instituições governamentais e empresas privadas estão, assim, investindo esforços para diminuir os milhares de litros de água que consumimos indiretamente dia após dia. Além das iniciativas citadas, várias pesquisas buscam encontrar formas de reduzir o consumo desse recurso, que está cada vez mais escasso nos locais onde a demanda, já grande, continua a crescer.
A Embrapa Mandioca e Fruticultura, por exemplo, tem realizado estudos sobre a técnica Irrigação Parcial de Raiz (PRD), na qual parte das raízes é irrigada e parte é submetida a secamento. Esses lados são alternados com frequência que depende dos tipos de solo e planta. As pesquisas têm mostrado resultado satisfatório, com diminuição da quantidade de água utilizada sem redução da produtividade.
Outro estudo é realizado pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) em parceria com a Universidade do Estado de São Paulo (USP) e busca a utilização de água de reuso, ou seja, proveniente do tratamento de esgoto, na irrigação. Essa técnica já é utilizada sem risco às populações em países como Israel, Egito, Austrália, Chile e Estados Unidos. No Brasil, ainda não há legislação sobre o assunto.
Fica evidente, assim, que a preocupação com a possível diminuição na disponibilidade de água por seu uso na agricultura é cada vez maior. Pesquisas já começam a apontar saídas criativas e experiências práticas já apresentam caminhos possíveis. Transformar essas soluções em práticas comuns é, agora, o desafio.

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